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Azulejos com o milagre de D. Fuas Roupinho
Azulejos com o milagre de D. Fuas Roupinho

A Lenda e o Culto à Senhora da Nazaré

O culto a Nossa Senhora da Nazaré teve início com a construção da primitiva Igreja mandada erigir pelo Rei D. Fernando em 1377 para albergar a venerada imagem da Virgem com o Menino ao colo, esculpida em madeira de oliveira policromada, alegadamente escondida durante a invasão islâmica e redescoberta mais tarde (Penteado, 1998; Santa Maria, 1707-1722). Segundo o Padre João Sobreiro, a imagem da Senhora de Nazaré, à semelhança de muitas outras imagens de santos, foi escondida durante as invasões islâmicas para evitar a sua profanação, sendo posteriormente redescoberta e associada a milagres.

A lenda central do culto é a do milagre de D. Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, que, ao caçar um veado, num dia de nevoeiro, em 1182, foi salvo de uma queda no precipício do Sítio pela intervenção da Virgem, após invocar o seu nome. Este episódio lendário reforçou a devoção mariana na região e levou à construção do Santuário no local, conhecido como “o Sítio”. Este local tornou-se, desde então, o mais antigo e importante Santuário Mariano português, recebendo sucessivas ampliações e benefícios ao longo dos reinados de D. João I, D. João II e D. Manuel, sempre sob a proteção régia. 

O templo atual, datado do final do século XVII, integra características barrocas e destaca-se pelas suas torres sineiras e pela galeria alpendrada de lioz mandada construir por D. Manuel para acolher os romeiros.

O culto à Senhora da Nazaré propagou-se intensamente por todo o país, tornando o Santuário do Sítio um dos mais importantes centros de peregrinação em Portugal, especialmente nos séculos XVII e XVIII. O Sítio era percebido como um ponto de encontro entre o divino e o humano, onde a Virgem atuava como conciliadora e protetora dos homens.

O Santuário da Nazaré atraía numerosos Círios e confrarias de diversas regiões de Portugal, como Porto de Mós, Alcobaça, Alhandra, Leiria, Sintra, Mafra, Colares, Lisboa, Óbidos, Coimbra, Penela, Santarém e Caldas. O Círio da Prata Grande, da região de Mafra e Sintra, ainda em vigor, é exemplo de uma peregrinação coletiva que se destaca pela sua antiguidade e opulência.

As peregrinações coletivas eram frequentemente organizadas por confrarias ou irmandades, que promoviam o culto da Senhora. Estas confrarias refletiam as hierarquias sociais e económicas das suas comunidades, com os seus oficiais a exibirem o seu poder e a opulência dos festejos. O período de maior afluência de Círios decorria entre maio e outubro, coincidindo com a época das colheitas, permitindo aos peregrinos agradecer à Virgem as boas safras. Pedro Penteado, estudioso do Santuário da Nazaré, enfatiza que os Círios foram uma forma de manifestação coletiva de fé, inserindo-se num movimento mais amplo de peregrinações marianas em Portugal, que se multiplicaram a partir do século XVII (1991).

 

Capela do Sitio da Nazaré
Capela do Bico da Memória, Nazaré

As Raízes do Círio de Olhalvo 

A história do Círio de Olhalvo à Senhora da Nazaré é construída cruzando a memória oral, a devoção popular e uma lacuna de registos históricos formais. A data de 1502 é constantemente referida pelos praticantes como o marco inaugural das peregrinações de Olhalvo à Senhora da Nazaré, conferindo à tradição uma longevidade que ultrapassa os quinhentos anos. Esta data, contudo, não encontra confirmação em documentos históricos, baseando-se na tradição oral que, de geração em geração, tem transmitido esta informação. 

A ligação à data de 1502 é referida num artigo de um periódico local — “O Nosso Jornal” — de 1963, escrito pelo Padre José Vieira Marcos, antigo pároco de Olhalvo, e pelo Professor António Guapo, que, através das suas pesquisas, apontam este ano como o ponto de partida da tradição. Nesse artigo, referem: “Quer uma voz popular, transmitida de boca em boca, que o Círio se realiza desde há 400 anos e tal (há precisamente quatrocentos e sessenta e um). Nada se descobriu nos livros do Santuário que o desminta ou o confirme.”

Mas porquê esta data? O culto a Nossa Senhora da Nazaré ocupa um lugar de destaque na história marítima e espiritual portuguesa. Segundo documentação histórica, Vasco da Gama, antes da sua partida para a Índia, deslocou-se ao Santuário da Nazaré para pedir proteção divina para a sua expedição (Brito Alão, 1628-1637). Segundo a tradição oral, vários ilustres e habitantes da freguesia de Olhalvo, com ligações à atividade marítima, teriam acompanhado Vasco da Gama ao Santuário da Nazaré. Embora não existam documentos históricos que confirmem esta participação, esta é a referência que marca a narrativa local sobre a origem da celebração. Contudo, a partida para a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia realizou-se em 1497 e a data fixada pela tradição oral e que passou a ser evocada como o marco inicial das peregrinações de Olhalvo à Senhora da Nazaré foi 1502.

Ora, conta a lenda que Vasco da Gama quando peregrinou ao Sítio da Nazaré, em sinal de devoção, trocou a sua corrente de ouro pelo rosário da imagem de Nossa Senhora da Nazaré, simbolizando a sua entrega e confiança na intercessão mariana. Durante a travessia do Cabo das Tormentas, enfrentando uma violenta tempestade, lançou o rosário ao mar, invocando ajuda divina. Milagrosamente, a tempestade acalmou, permitindo que a frota sobrevivesse ao desafio. Ao regressar a Portugal, após 1499, sem que se conheça o ano exato, Vasco da Gama teria voltado ao Santuário como romeiro para agradecer a proteção recebida e, como sinal de gratidão, ofereceu à imagem de Nossa Senhora um rico manto, que se tornou ex-voto e testemunho material da sua fé. Mais tarde, com o objetivo de consolidar o domínio português no Índico e impor acordos comerciais e militares, Vasco da Gama realiza uma segunda viagem à Índia, essa sim com partida a 12 de fevereiro de 1502. 

A referência a 1502 como marco fundador da celebração de Olhalvo poderá, assim, ser o resultado da referência cruzada entre a segunda vinda de Vasco da Gama à Nazaré e a data da segunda viagem que este navegador fez à Índia.

Francisco Cipriano, ressalva, contudo, que em 1502 ainda não existia uma celebração religiosa formalmente designada como “Círio” na sua forma atual, mas sim “peregrinações” e “promessas”, sugerindo que a formalização da prática devocional, tal como hoje a conhecemos, com o nome de “Círio”, terá tido o seu início a partir do século XVII. 

O termo “Círio” deriva do latim “Cereus” que significa “vela grande”. O Círio, na sua essência, representa uma vela ou uma promessa feita, neste caso, à Senhora da Nazaré. Esta etimologia sublinha a natureza votiva da peregrinação, onde a vela simboliza a fé e o cumprimento de um voto. A evolução do termo de “vela” para “procissão que leva a vela grande” e, posteriormente, para a própria peregrinação coletiva, reflete a formalização e o alargamento do significado da prática.

Outra referência que liga a celebração de Olhalvo à navegação marítima prende-se com o facto de Tristão da Cunha, nomeado vice-rei da Índia, que comandou uma armada à Índia em 1506, estar sepultado em Olhalvo, na Igreja de Nossa Senhora da Encarnação. Para além da narrativa não afirmar explicitamente que Tristão da Cunha tenha acompanhado Vasco da Gama na visita ao Santuário, este fator, e o facto da devoção à Senhora da Nazaré ser comum entre os marinheiros da época, parecem ter contribuído para associar simbolicamente a figura de Tristão da Cunha às motivações de devoção marítima, ligando o Círio de Olhalvo, as histórias locais e as memórias familiares à grande epopeia dos Descobrimentos. Francisco Cipriano, que esteve envolvido na organização do Círio a partir do final dos anos 60 (por Olhalvo e por Penafirme da Mata), enfatiza esta conexão histórica.

A motivação primordial para a origem do Círio encontra-se ainda intrinsecamente ligada ao cumprimento de promessas feitas à Senhora da Nazaré. Uma das razões mais frequentemente citadas é o pedido de chuva em tempos de grande seca. Testemunhos orais reforçam a ideia de que a tradição começou durante um ano de “muita seca” (supostamente 1502), quando a comunidade recorreu à Senhora da Nazaré para salvar as colheitas, iniciando assim os votos e romagens que evoluíram para o Círio. 

Francisco Cipriano, recorda que ao longo dos anos são frequentes promessas relacionadas com a chuva, tanto para que chovesse em tempos de estiagem como para que parasse de chover em excesso. Hernâni de Lemos Figueiredo, num artigo que escreve sobre o culto, também menciona a possibilidade de a romaria ter sido motivada por “alguma calamidade que atormentou a região, como a seca, algum desastre, a peste ou outra qualquer doença” (2006, pp.4). Em relação a este motivo, embora não existam registos documentais de uma seca ou episódio meteorológico específico no ano referido, o contexto da Pequena Idade do Gelo (séculos XV–XVI), com variabilidade climática e episódios de seca em Portugal, torna plausível a referência oral a essas calamidades. Em entrevista, o Padre João Sobreiro refere que, durante a “mini-era glaciar” na Europa medieval, as colheitas foram severamente comprometidas, “levando o povo a procurar auxílio na Senhora da Nazaré”.

 

fotografias antigas do Círio
Fotografias antigas do Círio

Como era antigamente o Círio de Olhalvo

Depois do Santuário da Nazaré ter mudado as suas festas de 5 de agosto para 8 de setembro (séc. XVIII), o Círio de Olhalvo à Senhora da Nazaré — que se realizava em “carroças, charretes e galeras”, durando a viagem de Olhalvo à Nazaré dois dias — partia quarta-feira, entre o dia 8 e o 3.º domingo de setembro (ainda hoje o Círio não pode entrar no recinto do Santuário antes do dia dos festejos locais). De quarta para quinta-feira os peregrinos faziam pernoitas em pensões ou “a monte”, nas Caldas da Rainha. João Cipriano, residente em Penafirme da Mata, recorda que a sua primeira ida à Nazaré, aos nove anos, foi numa carroça, com pernoita nas Caldas. 

Em 1972, deu-se a transição para a utilização dos tratores, tornando a viagem mais rápida e permitindo que as pessoas aproveitassem a estadia na Nazaré como “miniférias”. Nelson Costa sublinha: “Hoje com os tratores é mais rápido, mas o espírito é o mesmo”.

A entrada solene e oficial do Círio no Santuário de Nossa Senhora da Nazaré acontecia à sexta-feira, e a chegada ao Olhalvo acontecia ao domingo, com festa na segunda e terça-feira seguintes. A partir de 1991, como os participantes são maioritariamente empregados, com compromissos de trabalho fixo (o que não acontecia antigamente, quando os peregrinos eram predominantemente trabalhadores agrícolas), a entrada oficial no Santuário passou para o sábado. A chegada a Olhalvo continua a acontecer ao domingo, mas já não há programa de festas nos dias de semana subsequentes. José Damião Inácio, presidente da Associação Recreativa da Pocariça, refere que, antigamente, as festas prolongavam-se por quatro dias inteiros (sábado a terça-feira, com um baile popular), mas atualmente, com as exigências da vida profissional, as festas já não se prolongam pelos dias da semana.

A evolução da jornada do Círio, desde os sacrifícios das viagens em carroça até à modernização com tratores e a adaptação dos dias de celebração, demonstra a adaptação do ritual. A tradição mantém os seus elementos-chave — a peregrinação, a estadia na Nazaré, as paragens rituais (São Mamede, Óbidos), a bênção inicial, a procissão e outros elementos, mas foi objeto de diversas mudanças logísticas.

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