A pintura tradicional das embarcações típicas do estuário do Tejo constitui uma expressão artística popular profundamente enraizada na cultura ribeirinha. Executada de forma manual, esta pintura confere identidade visual a cada barco, distinguindo-o tanto na função como no contexto festivo e simbólico. A prática da pintura tradicional de embarcações do Tejo está profundamente ligada a um conjunto de bens materiais que sustentam, contextualizam e preservam esta expressão cultural.
A aprendizagem desta arte é marcada por um percurso informal, baseado na observação, na experiência prática e na convivência com os mestres. Muitos dos atuais pintores cresceram junto aos estaleiros e às praias fluviais, onde passavam os dias a ver trabalhar os carpinteiros navais e os pintores. A transmissão do saber dá-se “de olhos postos nas mãos dos outros”, como afirmam, e cada traço aprendido encerra uma ligação emocional ao território e às pessoas.

A adoção de novas técnicas ou materiais para pintar sublinha a vitalidade desta prática tradicional que continua em evolução. As novas tintas marítimas vieram facilitar a aplicação das pinturas decorativas tradicionais. Durante os vários séculos de existência destas embarcações no Tejo, os cascos adquiriam a cor negra através da aplicação de pez, alcatrão, que impermeabilizava os barcos. Hoje, os cascos são protegidos com tintas industriais marítimas, com uma paleta variada de cores, o que acrescentou diversidade visual a estas embarcações e permitiu estender a aplicação das pinturas decorativas a todo o barco, conforme a criatividade dos pintores.
Esta arte é praticada por um número reduzido de pintores ribeirinhos, com expressão significativa na Moita, mas cujas intervenções abrangem embarcações de toda a baía do Tejo, incluindo o Barreiro, Seixal, Alcochete e Lisboa. Estes artistas colaboram estreitamente com carpinteiros navais, arrais, proprietários de embarcações e associações náuticas.

A decoração recorre a um conjunto de motivos recorrentes, aplicados sobretudo nas “emendas” (faixas superiores do casco) e no painel de popa:
Flores – Rosas, malmequeres, cravos e outras espécies estilizadas, geralmente dispostas em ramos, bordados ou buquês, pintadas com cores vivas e contrastantes, muitas vezes com sombreados subtis que lhes conferem volume.
Cenas religiosas – Representações de santos populares (Santo António, Nossa Senhora da Boa Viagem, Sagrado Coração de Jesus), ligadas à proteção dos navegantes e das embarcações.
Cenas ligadas a celebrações locais – Especial destaque para motivos taurinos, como campinos, touros e arenas, alusivos à tradição de touradas e largadas na lezíria e nas vilas ribeirinhas.
Temas do quotidiano – Paisagens fluviais, barcos em navegação, elementos naturais e referências à vida marítima.

Um elemento distintivo da pintura destes barcos é a Caligrafia artesanal usada nos nomes e matrículas:
Não existe um tipo gráfico fixo ou estandardizado. Cada pintor desenvolve o seu próprio abecedário decorativo, resultado de anos de prática e experimentação.
As letras são pintadas à mão, muitas vezes com contornos coloridos, sombreados e ornamentos, tornando-se uma “assinatura” pessoal do pintor.
Este estilo individualizado permite identificar facilmente a autoria de uma pintura, sendo reconhecido pela comunidade (“estas letras são do Luís”, “estas são do Eduardo”).
A execução das letras requer grande precisão técnica, uso de fitas ou guias para manter proporções e um domínio do traço livre.

Património Material associado
A prática da pintura tradicional de embarcações do Tejo está profundamente ligada a um conjunto de bens materiais que sustentam, contextualizam e preservam esta expressão cultural. Entre os principais elementos de património material associado destacam-se:
As Embarcações Tradicionais
Varinos, faluas, canoas, catraias, fragatas e outras tipologias náuticas do Tejo constituem o suporte físico e funcional desta prática. Estes barcos, de construção em madeira, seguem modelos tradicionais adaptados ao regime de marés e às características do estuário. As suas formas e proporções condicionam o tipo de pintura possível, incluindo áreas como a proa, painel de popa e “emendas” (faixas decorativas no topo do casco).

2. Os Estaleiros Navais Tradicionais
Espaços essenciais para a construção, reparação e pintura das embarcações;
Situam-se nas margens do Tejo, em localidades como Moita (Sarilhos Pequenos), Seixal, Barreiro, Alcochete e Lisboa;
São também locais de transmissão oral e prática de saberes, funcionando como oficinas vivas da cultura ribeirinha.

3. Ferramentas e Materiais Tradicionais
Tintas e pigmentos, hoje comerciais, mas outrora preparadas com materiais naturais: pincéis finos, palitos, fitas adesivas, papel vegetal e instrumentos caseiros adaptados para sombreados e traços decorativos.
Elementos auxiliares de apoio à pintura, como pranchas, andaimes ou suportes instalados junto aos barcos.

4. Painéis Pintados e Componentes Decorativos
Elementos visuais que integram a estrutura dos barcos, como o painel de popa, frequentemente figurativo (religioso, taurino, popular).
As letras do nome da embarcação, pintadas com técnicas tradicionais.
Os pdrões e emendas florais, que funcionam como assinatura estética do pintor.

5. Registos Documentais e Visuais
Fotografias antigas, postais, desenhos técnicos e pinturas que testemunham a evolução das embarcações e dos estilos decorativos;
Modelos de barcos tradicionais em museus e associações náuticas, como o Museu de Marinha ou o Museu Naval do Seixal;
Catálogos e publicações que documentam os estilos e autores destas pinturas ao longo do tempo.